Hoje escrevo sobre um livro onde tenho uma participação especial, em que fui convidado pelo fotógrafo (amador) o médico-anestesista Dr. Manuel Coelho para fazer a selecção das fotografias e para escrever o texto de apresentação do projecto. Mas é interessante saber como é que chego ao projecto e a razão pela qual aceitei participar no mesmo.
Recentemente escrevi um artigo onde descrevo o meu interesse por fotógrafos que trabalhem em projectos e séries, isso tem uma razão que podem descobrir lendo o artigo referido, por isso quando me pediram a minha opinião sobre as fotografias que compõem este projecto fiquei um pouco surpreendido. Foi pedida a minha opinião formada como autor deste blogue e como comissário e dada aproximidade que nos une isso é sempre complicado mas aceitei de bom grado.
Logo ao primeiro olhar o que me chamou à atenção foi a coerência estética e de composição nas fotografias, isso “saltou-me” de imediato, e segundo surpreendeu-me o ambiente retratado, com uma solidão e melancolia muito marcada e gostei bastante do conjunto.
Agora chegamos ao livro, editado no Blurb, intitulado Solitude para o qual colaborei na selecção final das fotografias e com o texto de apresentação.
Eis uma imagem da selecção:
Os corredores austeros, brancos, imaculados, são um repositório de silêncio, indiferentes ao inexorável passar das horas assistem a tudo mas ao mesmo tempo não são testemunhas de nada. No silêncio das horas a solidão é um grito de testemunho contra a indiferença, contra o correr dos ponteiros que se dirigem ao
final de mais um dia e muitas vezes ao final de uma vida. A solidão é assim um reduto, um acto de tentar transcender o inevitável e o esquecimento, é também um acto de auto-preservação – uma protecção se assim lhe quiserem chamar – do profissional, uma forma de lidar com o mundo à sua volta.
Assim nos longos períodos entre doentes estas fotografias foram surgindo como um testemunho da melancolia e da solidão do acto de salvar o próximo sem nos deixarmos contagiar pela desolação de uma cama vazia, pelo silêncio das paredes brancas. Na solitude profunda das noites e dias a fotografia surge assim como um elemento redentor, um suporte que agarra o fotógrafo à realidade mas que funciona como um escape à mesma. Estas fotografias transcendem a realidade, transfiguram-na e surgem como um olhar íntimo sobre o próprio fotógrafo; são assim um espelho através do qual vemos o reflexo do artista e o seu retrato mais intimista.
De facto este projecto captou-me a atenção desde o dia em que vi algumas das fotografias que o compõem, a solidão marcada (ou solitude), a coerência estética fazem dele um projecto que mereceu a minha atenção e a qualidade global, mais do que a proximidade, interessou-me sobremaneira. É impossível escapar a um facto que marca este projecto: ele não existiria sem um smartphone (neste caso um Apple iPhone 3Gs), é um sinal dos tempos (fotográficos) a que não podemos escapar.
Solitude é uma visão íntima sobre os bastidores dos hospitais, um olhar sobre o exercício solitário da medicina mas sobretudo sobre a solidão sentida e procurada por Manuel Coelho, revelada de forma desarmante e sincera. É um conjunto de imagens que não descura a estética e a coerência mas que também não tem medo de se expor e de revelar o mais íntimo dos seus pensamentos, dos seus medos e de os mostrar e enfrentar. São fotografias que me surpreenderam sobretudo pela forma que assumem essa revelação e sinceridade, são fotografias sombrias é certo mas também é o tom procurado, afinal todos nós temos o direito à solidão. Gosto também do silêncio que deriva do ambiente de solidão e melancolia, eu não diria de tristeza mas de uma certa instrospecção, quase de meditação e isso sobressai neste conjunto.
Globalmente é um projecto muito interessante, coerente, executado com intenção e talento, que me marcou muito – eu que gosto muito da solidão – e para o qual contribuí em face dessas características, caso contrário não o teria feito. Para primeiro projecto é algo de extraordinário.
Nota: dada a minha proximidade com o projecto assumi que não deveria dar rating ao livro, apenas por essa razão. De qualquer forma deixo-vos um vídeo onde podem desfolhar o livro…